terça-feira, julho 10, 2018

O conto da Aia - a memória como condição de humanidade

       
O romance O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, de 1985, é uma obra consagrada desde a época de sua publicação. A autora, aliás, possui uma vasta obra, composta de romances, poesia, literatura infantil e textos não ficcionais, foi agraciada com numerosos prêmios, enfim, é um grande nome da literatura mundial. Mais recentemente, entretanto, O Conto da Aia voltou a ganhar destaque, seja pelo lançamento da série de mesmo nome, seja pelo recrudescimento de tendências conservadoras e posturas politicamente autoritárias no cenário internacional, que trazem semelhanças ao dramático contexto da distopia imaginada por Atwood. Misoginia, homofobia, desprezo pelo conhecimento, são alguns dos aspectos que povoam a pós-apocalíptica totalitária sociedade de Gilead.
        Recomendo muito a leitura, por sua qualidade literária e pelas reflexões que o enredo suscita. Distopias são provocativas por natureza, e fica difícil evitar uma certa paranoia provocada pela fantasia da implementação súbita de extremos de cerceamento e controle social como os descritos pela narradora, a Aia especificada no título.
       A síntese do romance é fácil de se encontrar, e a série ainda não vi - tem sido elogiada, ganhou vários Emmys, e espero realmente que ela esteja à altura do delicado texto original.
       O que se destaca, a meu ver, na leitura, é o trabalho primoroso que a autora faz ao redor da importância da memória como ato de resistência. O fluxo de consciência registrado pela narradora, limitada pelo seu lugar específico de Aia naquela sociedade rigidamente estratificada, traz marcas da busca de identidades que possam oferecer material para a criação de algum tipo de vínculo. Ela é conhecida como Offred no momento em que se passa a história, denominação que atesta seu pertencimento a um dado núcleo familiar. A negação das individualidades e das histórias pessoais aparecem como característica marcante do sistema predominante em Gilead. Assim, dá-se a intenção de marcar a memória com suas diferentes ativações: um seguido recontar das histórias das Aias que estiveram consigo no severo Centro de Reeducação; o buscar, nas esquinas da cidade, as reminiscencias dos espaços por onde circulava nos velhos tempos; o ato de aguçar a atenção para fixar os traços do amante, para que eles não se esvaiam, como parece acontecer com os traços do marido que o sistema lhe tirou
         Atwood joga, na narrativa, com a plasticidade do contar. São vários os momentos em que temos múltiplas possibilidades de visões das cenas, algumas buscando maior precisão, outras trazendo o relato do desejo da narradora, logo contrafeito pela realidade que a frustrava. A dura vivência de Offred é permeada pelas idas e vindas de seu pensamento, buscando pistas para tentar entender o súbito esfacelamento da sua existência absolutamente trivial e o espanto e terror diante de uma situação em que sobreviver e não cair ainda mais baixo na zona de indignidade tornou-se uma preocupação de primeira ordem.
        Ao final, Atwood reserva um capítulo especialmente provocativo aos historiadores, mimetizando eventos do campo e gêneros da produção historiográfica. Coloca-nos, assim, diante dos exercícios de construção da historicidade, com seus ritos e suas limitações, com compromisso de entendimento dos períodos estudados em sua complexidade, mas com a inevitável empatia em relação às dores e às violências vivenciadas por aqueles sobre quem estudamos. 
        Nesses tempos em que as disputas de narrativas acirram-se em tantas esferas, que a despersonalização das relações e a futilização dos artefatos de memória se disseminam com velocidade, a leitura de O conto da Aia valoriza capacidades humanas muito básicas como ferramentas de manutenção da humanidade em condições muito adversas. Hora de nos aferrarmos, no mínimo, ao básico.


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