é preciso reconceptualizar as técnicas
Como sempre o Nicolau propondo interpretações muito ricas das qeustões contemporâneas. Texto da Folha de São Paulo, 18/12/2005, em reportagem "O Ano em Idéias".
Comportamento - O labirinto da cidade-cultura
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Está à altura de qualquer um que assim o queira, é claro, portar-se como um cidadão canônico. Afinal, o país é tido como livre e ninguém suporta admitir que, pessoalmente, talvez não o seja. A prova quintessencial dessa liberdade sendo a possibilidade de escolha, ainda que entre sete opções de analgésicos ou entre dois candidatos numa eleição de voto compulsório.
Experiências dolorosas recentes, de diferentes naturezas, têm porém disseminado atitudes de maior prudência e sentimentos difusos de desconfiança, rejeição e assombro. Mas seria um erro permitir que a atual onda de frustração, decepção e abatimento se traduzisse em cinismo.
A melhor inspiração vem do mito do labirinto. O ardil fundamental de Dédalo, seu construtor, era o de uma rede tão simétrica e intrincada de caminhos, uns absolutamente idênticos aos outros, de forma que seria impossível distinguir onde estavam as rotas, como se retornava ao início ou como se achava a saída.
Uma vez dentro, você estaria perdido para sempre, entregue à voracidade do Minotauro. A solução foi o fio de Ariadne, fino, flexível, leve, quase invisível. Graças a ele Teseu venceu a estrutura, matou o Minotauro e voltou aos braços da amada.
Estratégias sutis
As grandes crises requerem estratégias sutis. Em primeiro lugar a avaliação: qual é a megaestrutura atual? Ela é representada pelos interesses simétricos do mercado e da publicidade, de um lado, e da tecnociência e da tecnoburocracia, do outro. As linhas eletrônicas, que ligam criaturas independentes em redes autônomas, parecem ser o fio da saída. Em parte são; o front eletrônico ferve. Ninguém mais liga para quem não se liga. Mas quem está ligado sabe que a tecnologia é mais parte do problema que da solução.
O fato é -o pessoal rápido no teclado já sacou- que não há retorno. O grau de interferência que os sistemas técnicos atingiram em todas as dimensões do mundo natural são de tal magnitude que o ambiente do planeta se transformou numa tecnosfera. A essa altura, só a tecnologia pode nos salvar dos efeitos nefastos da ruína pelo desequilíbrio tecnológico. Ou seja, é preciso reconceptualizar as técnicas.
Ante a iminência do desastre, o que as cabeças espertas estão engendrando é uma ecotecnociência, preocupada em voltar as pesquisas e conhecimentos de ponta para o reequilíbrio natural do planeta, para o incremento da qualidade de vida nas cidades e para a melhor distribuição dos recursos entre as gentes. São inaceitáveis discursos que defendam soluções estritamente técnicas para questões de amplo impacto social e ambiental, sejam elas a transposição de rios, a gestão do tráfego nas metrópoles ou a proteção de florestas e mananciais.
Uma ciência sensível
Assim como na época da industrialização selvagem um filósofo propôs uma "gaia ciência", hoje as novas gerações pressionam por uma "ciência sensível": socialmente responsável, ecologicamente orientada e crítica tanto de seus limites quanto de seus potenciais ameaçadores.
O outro lado, simétrico, da megaestrutura é sua dimensão espetacular, composta pelo eixo do mel: mercado, publicidade e consumo. Esse efeito vitrine oculta uma dinâmica que integra pelo despejo dos indesejáveis enquanto articula uma racionalidade estatístico-visual do sucesso e do estilo.
Seu subproduto é a cidade-cultura, cenário bufo da nova indústria do turismo, sobreposto à tensão social e à degradação urbana. A resposta do povo de Ariadne é o confronto do "tour" pelo "détour", a criação de uma cidade nômade dentro de uma sedentária, furando os muros da exclusão, reatando laços esgarçados, deflagrando a cultura-entropia, detonando o labirinto.
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Nicolau Sevcenko é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" e "Literatura como Missão" (Companhia das Letras), entre outros.
Comportamento - O labirinto da cidade-cultura
NICOLAU SEVCENKO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Está à altura de qualquer um que assim o queira, é claro, portar-se como um cidadão canônico. Afinal, o país é tido como livre e ninguém suporta admitir que, pessoalmente, talvez não o seja. A prova quintessencial dessa liberdade sendo a possibilidade de escolha, ainda que entre sete opções de analgésicos ou entre dois candidatos numa eleição de voto compulsório.
Experiências dolorosas recentes, de diferentes naturezas, têm porém disseminado atitudes de maior prudência e sentimentos difusos de desconfiança, rejeição e assombro. Mas seria um erro permitir que a atual onda de frustração, decepção e abatimento se traduzisse em cinismo.
A melhor inspiração vem do mito do labirinto. O ardil fundamental de Dédalo, seu construtor, era o de uma rede tão simétrica e intrincada de caminhos, uns absolutamente idênticos aos outros, de forma que seria impossível distinguir onde estavam as rotas, como se retornava ao início ou como se achava a saída.
Uma vez dentro, você estaria perdido para sempre, entregue à voracidade do Minotauro. A solução foi o fio de Ariadne, fino, flexível, leve, quase invisível. Graças a ele Teseu venceu a estrutura, matou o Minotauro e voltou aos braços da amada.
Estratégias sutis
As grandes crises requerem estratégias sutis. Em primeiro lugar a avaliação: qual é a megaestrutura atual? Ela é representada pelos interesses simétricos do mercado e da publicidade, de um lado, e da tecnociência e da tecnoburocracia, do outro. As linhas eletrônicas, que ligam criaturas independentes em redes autônomas, parecem ser o fio da saída. Em parte são; o front eletrônico ferve. Ninguém mais liga para quem não se liga. Mas quem está ligado sabe que a tecnologia é mais parte do problema que da solução.
O fato é -o pessoal rápido no teclado já sacou- que não há retorno. O grau de interferência que os sistemas técnicos atingiram em todas as dimensões do mundo natural são de tal magnitude que o ambiente do planeta se transformou numa tecnosfera. A essa altura, só a tecnologia pode nos salvar dos efeitos nefastos da ruína pelo desequilíbrio tecnológico. Ou seja, é preciso reconceptualizar as técnicas.
Ante a iminência do desastre, o que as cabeças espertas estão engendrando é uma ecotecnociência, preocupada em voltar as pesquisas e conhecimentos de ponta para o reequilíbrio natural do planeta, para o incremento da qualidade de vida nas cidades e para a melhor distribuição dos recursos entre as gentes. São inaceitáveis discursos que defendam soluções estritamente técnicas para questões de amplo impacto social e ambiental, sejam elas a transposição de rios, a gestão do tráfego nas metrópoles ou a proteção de florestas e mananciais.
Uma ciência sensível
Assim como na época da industrialização selvagem um filósofo propôs uma "gaia ciência", hoje as novas gerações pressionam por uma "ciência sensível": socialmente responsável, ecologicamente orientada e crítica tanto de seus limites quanto de seus potenciais ameaçadores.
O outro lado, simétrico, da megaestrutura é sua dimensão espetacular, composta pelo eixo do mel: mercado, publicidade e consumo. Esse efeito vitrine oculta uma dinâmica que integra pelo despejo dos indesejáveis enquanto articula uma racionalidade estatístico-visual do sucesso e do estilo.
Seu subproduto é a cidade-cultura, cenário bufo da nova indústria do turismo, sobreposto à tensão social e à degradação urbana. A resposta do povo de Ariadne é o confronto do "tour" pelo "détour", a criação de uma cidade nômade dentro de uma sedentária, furando os muros da exclusão, reatando laços esgarçados, deflagrando a cultura-entropia, detonando o labirinto.
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Nicolau Sevcenko é professor de história na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e autor de "Orfeu Extático na Metrópole" e "Literatura como Missão" (Companhia das Letras), entre outros.