A disseminação da sociedade da vigilância
Nessa entrevista com o geógrafo norte-americano Jerome Dobson, leio boas reflexões sobre a tendência "vigilantista" que vai se disseminando ainda mais junto com os equipamentos eletrônicos que facilitam essa tendência. Boa para ajudar na reflexão sobre os avanços da limitação a nossa liberdade de existir e perâmbular incognitos.
Aliás, soube hoje, por esse comentário do Eduardo Ribeiro Augusto ao post do Jaime Balbino num blog do SENAED 2009, sobre Direitos Autorais e EAD, que "o artigo 46, inciso I (da Lei de Direitos Autorais 9610/98) visando a propagação da informação, faculta a reprodução na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos".
Transcrevo aqui então a entrevista feita por Rafael Garcia, publicada na Folha de São Paulo, no dia 24/05/2009.
Big Brother no varejo
Opressão de "1984" é praticada hoje por indivíduos, não pelo Estado, diz geógrafo Jerome Dobson
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O pesadelo imaginado por George Orwel no romance "1984" está se tornando realidade, afirma um dos geógrafos mais reconhecidos dos EUA. No clássico da ficção científica, o ditador Big Brother (grande irmão) exercia controle sobre os cidadãos rastreando-os com câmeras e telas. Isso acontece agora com cada vez mais frequência, mas na vida real não é obra de um tirano autoritário, afirma Jerome Dobson, presidente da Sociedade Geográfica Americana. "O problema agora são os "Little Brothers" (pequenos irmãos)", diz o cientista.
Criador do termo "geoescravidão", Dobson diz que o controle sobre a vida de indivíduos está acontecendo mais no varejo do que no atacado, e o grande culpado é o barateamento dos rastreadores com sistema de localização por satélite, o GPS.
Qualquer um disposto a pagar US$ 40 por mês pode rastrear uma pessoa 24 horas por dia, e, segundo ele, isso trará mudanças sociais profundas, alterando relações entre pais e filhos, maridos e esposas, patrões e empregados. Em entrevista à Folha por telefone, o pesquisador da Universidade do Kansas explica por que acredita que essa nova tecnologia precisa ter um controle de uso mais rígido.
FOLHA - O historiador Francis Fukuyama defende a ideia de que Orwel disseminou um medo errado em "1984" pois, quando a tecnologia da informação finalmente ganhou corpo com a internet e os celulares, ela trouxe liberdade para os indivíduos, não opressão. O GPS e os rastreadores, agora, são o contrário?
JEROME DOBSON - Há grande diferença entre o Big Brother de George Orwel e aquilo que está acontecendo hoje. Primeiro, o perigo do qual eu falo não é necessariamente hierárquico, imposto pelo governo aos indivíduos. O que estou dizendo é que há muito mais "Little Brothers" mundo afora. A habilidade de uma pessoa vigiar outra não é hierárquica, e abre caminho para vários tipos de relações de poder em que maridos controlam esposas, patrões controlam empregados etc.
O que acontece é que isso é uma forma de vigilância muito muito mais propensa a ser aceita do que propostas anteriores, como o Big Brother. Ela é uma forma muito mais eficiente e apresenta uma ameaça não só à privacidade, mas à liberdade pessoal. É a maior ameaça já experimentada pelos humanos às liberdades individuais.
FOLHA - Que exemplos desse tipo de abuso podem ser mencionados?
DOBSON - Veja o caso de Stacy Peterson, que a imprensa de Illinois [EUA] noticiou. É uma mulher que está desaparecida e seu marido, um policial, alega que ela simplesmente tinha ido embora. Mas descobriram que ele estava usando coordenadas do telefone celular dela para rastreá-la. E ela tinha ficado muito incomodada com isso.
Os amigos disseram que ela tentou se livrar daquele controle, mudando de telefone. Mas ele conseguia sempre usar os números para rastreá-la. O advogado do policial foi questionado num programa de TV e justificou o comportamento de seu cliente dizendo: "Bom, todos os policiais na delegacia estavam fazendo isso". Então, a tecnologia já está aí, em certo sentido. Certamente é uma ferramenta boa contra o crime, mas as pessoas honestas em atividades honestas também estão sob risco de serem observadas e controladas.
FOLHA - O sr. acha que já é hora de criar leis que impeçam a ocorrência de casos como o de Peterson?
DOBSON - Sim. Deveria haver legislação sobre isso. Há muitos casos em que o que está sendo analisado são os requisitos para as autoridades. Um departamento de polícia deve ou não precisar de um mandado para fazer isso? Alguns Estados fazem de um jeito, outros fazem de outro. Isso ainda está sendo aperfeiçoado no sistema legal.
FOLHA - Alguém que não é policial tem acesso a isso hoje? O sr. escreveu em um artigo que é possível monitorar uma pessoa 24 horas por dia pagando US$ 500 anuais.
DOBSON - Esses US$ 500 são o que você paga a um serviço simples. Você entra na internet e consegue achar esses produtos à venda. As taxas que cobram por um chamado Wherify Wireless [vendido como "rastreador de crianças"] são mais ou menos as da assinatura de um telefone celular. Provavelmente você terá de pagar US$ 200 por um aparelho básico, mais a taxa mensal de uns US$ 20.
FOLHA - O sr. diz que um uso benéfico dessa tecnologia é a capacidade de rastrear condenados pela justiça, em vez de prendê-los. Já há muitas experiências com isso?
DOBSON - É usado rotineiramente. O caso mais famoso é o de Martha Stewart, apresentadora de TV. Ela cometeu irregularidades em negociações de sua empresa e foi colocada sob prisão domiciliar. Tinha de usar, então, uma tornozeleira eletrônica com o rastreador.
Algo que tem de ser esclarecido é que quando juízes põem alguém sob esse tipo de confinamento, costumam chamar isso de encarceramento, com o mesmo significado da prisão em uma cela, no sentido jurídico. É uma prisão de extensão maior, mas não é liberdade.
FOLHA - O rastreamento deve ser sempre legal, quando consentido? Um patrão não pode coagir seus funcionários a portar rastreadores?
DOBSON - As pessoas devem negociar para decidir o que é válido para elas. Alguém pode se ver obrigado a usar isso se a alternativa for a demissão. Mas as pessoas se candidatariam a um emprego sabendo disso?
William Herbert, jurista especialista no aspecto legal do rastreamento, fez carreira no sindicalismo e desenvolveu argumentos para defender que isso não seja permitido. Mas eu tenho uma abordagem diferente. Acho que é uma questão que deve ser submetida a uma decisão pensada, tomada pelos próprios trabalhadores. Por exemplo, se um sindicato está negociando um contrato para seus afiliados, será que isso poderia ser posto na mesa como moeda de troca, assim como se faz com salários, jornadas, férias e benefícios de saúde? É algo que tem sido pouco debatido, mas acho que os sindicatos alguma hora vão reconhecer que isso é um custo para eles. Se as empresas acreditam que isso vai torná-las mais eficientes, então elas deveriam estar dispostas a pagar por isso.
Pessoalmente, eu não aceitaria um emprego assim. Insisto muito na minha independência de ação e nunca aceitaria ter de ficar relatando a alguém onde estou e o que estou fazendo, mesmo sem estar fazendo nada errado. Não quero pessoas bisbilhotando minhas coisas e sabendo onde estou. É uma questão de princípios para mim.
FOLHA - O sr. acha que os atentados terroristas de 2001 contribuíram para essa paranoia vigilante?
DOBSON - Sim. Temporariamente, eles alimentaram a tendência das pessoas a aceitar mais restrições. Mas tivemos uma eleição depois disso, e há indícios claros de que as pessoas estão preparadas para retornar aos seus princípios.
FOLHA - Como o sr. começou a se interessar por esse problema?
DOBSON - Estou nesse campo desde 1975. Trabalhei no Laboratório Nacional de Oakridge por 26 anos antes de vir para a Universidade do Kansas. Foi quando eu estava lá que essa nova capacidade de rastreamento se tornou uma questão importante. Na época, um empresário do setor privado foi ao laboratório e me pediu para ajudá-lo a construir um desses sistemas [de vigilância de empregados], mas eu me recusei.
Aliás, soube hoje, por esse comentário do Eduardo Ribeiro Augusto ao post do Jaime Balbino num blog do SENAED 2009, sobre Direitos Autorais e EAD, que "o artigo 46, inciso I (da Lei de Direitos Autorais 9610/98) visando a propagação da informação, faculta a reprodução na imprensa diária ou periódica, de notícia ou de artigo informativo, publicado em diários ou periódicos, com a menção do nome do autor, se assinados, e da publicação de onde foram transcritos".
Transcrevo aqui então a entrevista feita por Rafael Garcia, publicada na Folha de São Paulo, no dia 24/05/2009.
Big Brother no varejo
Opressão de "1984" é praticada hoje por indivíduos, não pelo Estado, diz geógrafo Jerome Dobson
RAFAEL GARCIA
DA REPORTAGEM LOCAL
O pesadelo imaginado por George Orwel no romance "1984" está se tornando realidade, afirma um dos geógrafos mais reconhecidos dos EUA. No clássico da ficção científica, o ditador Big Brother (grande irmão) exercia controle sobre os cidadãos rastreando-os com câmeras e telas. Isso acontece agora com cada vez mais frequência, mas na vida real não é obra de um tirano autoritário, afirma Jerome Dobson, presidente da Sociedade Geográfica Americana. "O problema agora são os "Little Brothers" (pequenos irmãos)", diz o cientista.
Criador do termo "geoescravidão", Dobson diz que o controle sobre a vida de indivíduos está acontecendo mais no varejo do que no atacado, e o grande culpado é o barateamento dos rastreadores com sistema de localização por satélite, o GPS.
Qualquer um disposto a pagar US$ 40 por mês pode rastrear uma pessoa 24 horas por dia, e, segundo ele, isso trará mudanças sociais profundas, alterando relações entre pais e filhos, maridos e esposas, patrões e empregados. Em entrevista à Folha por telefone, o pesquisador da Universidade do Kansas explica por que acredita que essa nova tecnologia precisa ter um controle de uso mais rígido.
FOLHA - O historiador Francis Fukuyama defende a ideia de que Orwel disseminou um medo errado em "1984" pois, quando a tecnologia da informação finalmente ganhou corpo com a internet e os celulares, ela trouxe liberdade para os indivíduos, não opressão. O GPS e os rastreadores, agora, são o contrário?
JEROME DOBSON - Há grande diferença entre o Big Brother de George Orwel e aquilo que está acontecendo hoje. Primeiro, o perigo do qual eu falo não é necessariamente hierárquico, imposto pelo governo aos indivíduos. O que estou dizendo é que há muito mais "Little Brothers" mundo afora. A habilidade de uma pessoa vigiar outra não é hierárquica, e abre caminho para vários tipos de relações de poder em que maridos controlam esposas, patrões controlam empregados etc.
O que acontece é que isso é uma forma de vigilância muito muito mais propensa a ser aceita do que propostas anteriores, como o Big Brother. Ela é uma forma muito mais eficiente e apresenta uma ameaça não só à privacidade, mas à liberdade pessoal. É a maior ameaça já experimentada pelos humanos às liberdades individuais.
FOLHA - Que exemplos desse tipo de abuso podem ser mencionados?
DOBSON - Veja o caso de Stacy Peterson, que a imprensa de Illinois [EUA] noticiou. É uma mulher que está desaparecida e seu marido, um policial, alega que ela simplesmente tinha ido embora. Mas descobriram que ele estava usando coordenadas do telefone celular dela para rastreá-la. E ela tinha ficado muito incomodada com isso.
Os amigos disseram que ela tentou se livrar daquele controle, mudando de telefone. Mas ele conseguia sempre usar os números para rastreá-la. O advogado do policial foi questionado num programa de TV e justificou o comportamento de seu cliente dizendo: "Bom, todos os policiais na delegacia estavam fazendo isso". Então, a tecnologia já está aí, em certo sentido. Certamente é uma ferramenta boa contra o crime, mas as pessoas honestas em atividades honestas também estão sob risco de serem observadas e controladas.
FOLHA - O sr. acha que já é hora de criar leis que impeçam a ocorrência de casos como o de Peterson?
DOBSON - Sim. Deveria haver legislação sobre isso. Há muitos casos em que o que está sendo analisado são os requisitos para as autoridades. Um departamento de polícia deve ou não precisar de um mandado para fazer isso? Alguns Estados fazem de um jeito, outros fazem de outro. Isso ainda está sendo aperfeiçoado no sistema legal.
FOLHA - Alguém que não é policial tem acesso a isso hoje? O sr. escreveu em um artigo que é possível monitorar uma pessoa 24 horas por dia pagando US$ 500 anuais.
DOBSON - Esses US$ 500 são o que você paga a um serviço simples. Você entra na internet e consegue achar esses produtos à venda. As taxas que cobram por um chamado Wherify Wireless [vendido como "rastreador de crianças"] são mais ou menos as da assinatura de um telefone celular. Provavelmente você terá de pagar US$ 200 por um aparelho básico, mais a taxa mensal de uns US$ 20.
FOLHA - O sr. diz que um uso benéfico dessa tecnologia é a capacidade de rastrear condenados pela justiça, em vez de prendê-los. Já há muitas experiências com isso?
DOBSON - É usado rotineiramente. O caso mais famoso é o de Martha Stewart, apresentadora de TV. Ela cometeu irregularidades em negociações de sua empresa e foi colocada sob prisão domiciliar. Tinha de usar, então, uma tornozeleira eletrônica com o rastreador.
Algo que tem de ser esclarecido é que quando juízes põem alguém sob esse tipo de confinamento, costumam chamar isso de encarceramento, com o mesmo significado da prisão em uma cela, no sentido jurídico. É uma prisão de extensão maior, mas não é liberdade.
FOLHA - O rastreamento deve ser sempre legal, quando consentido? Um patrão não pode coagir seus funcionários a portar rastreadores?
DOBSON - As pessoas devem negociar para decidir o que é válido para elas. Alguém pode se ver obrigado a usar isso se a alternativa for a demissão. Mas as pessoas se candidatariam a um emprego sabendo disso?
William Herbert, jurista especialista no aspecto legal do rastreamento, fez carreira no sindicalismo e desenvolveu argumentos para defender que isso não seja permitido. Mas eu tenho uma abordagem diferente. Acho que é uma questão que deve ser submetida a uma decisão pensada, tomada pelos próprios trabalhadores. Por exemplo, se um sindicato está negociando um contrato para seus afiliados, será que isso poderia ser posto na mesa como moeda de troca, assim como se faz com salários, jornadas, férias e benefícios de saúde? É algo que tem sido pouco debatido, mas acho que os sindicatos alguma hora vão reconhecer que isso é um custo para eles. Se as empresas acreditam que isso vai torná-las mais eficientes, então elas deveriam estar dispostas a pagar por isso.
Pessoalmente, eu não aceitaria um emprego assim. Insisto muito na minha independência de ação e nunca aceitaria ter de ficar relatando a alguém onde estou e o que estou fazendo, mesmo sem estar fazendo nada errado. Não quero pessoas bisbilhotando minhas coisas e sabendo onde estou. É uma questão de princípios para mim.
FOLHA - O sr. acha que os atentados terroristas de 2001 contribuíram para essa paranoia vigilante?
DOBSON - Sim. Temporariamente, eles alimentaram a tendência das pessoas a aceitar mais restrições. Mas tivemos uma eleição depois disso, e há indícios claros de que as pessoas estão preparadas para retornar aos seus princípios.
FOLHA - Como o sr. começou a se interessar por esse problema?
DOBSON - Estou nesse campo desde 1975. Trabalhei no Laboratório Nacional de Oakridge por 26 anos antes de vir para a Universidade do Kansas. Foi quando eu estava lá que essa nova capacidade de rastreamento se tornou uma questão importante. Na época, um empresário do setor privado foi ao laboratório e me pediu para ajudá-lo a construir um desses sistemas [de vigilância de empregados], mas eu me recusei.
Etiquetas: celulares, gps, internet, vigilancia