domingo, janeiro 29, 2023

Meninas, um olhar precioso!

Meninas, da russa Liudmila Ulistakaia, que preciosidade!

Escrito nos anos 90, foi definido pela autora como um "romance fractal", ou seja, parece um conjunto de contos, mas as personagens transitam entre eles,  que dá ao leitor um sentimento de conjunto. Vamos construindo intimidade com aquelas meninas entre 9 e 12 anos, habitantes de uma Moscou dos anos 50, ainda sob a condução de Stalin.

 No pano de fundo, pairam os valores da sociedade socialista, os desencontros herdados das guerras, o antissemitismo, as hierarquias e privilégios inesperados e naturalizados numa nova era que se pretendia construir.

Compõem o cenário a escola, os apartamentos, edifícios ou quartinhos onde moram essas meninas de origens variadas, numa diversidade associada às origens nacionais, ao acesso à bens e status político de cada família, a suas compleições físicas, ao entorno familiar e sua cultura. No convívio entre as meninas, uma observação arguta da construção dos lugares de poder, das fantasias e temores, da sabedoria diversa que oferece potência a personagens que facilmente poderiam estar numa condição mais vitimizada ou silenciada. 

As situações em que se metem as meninas trazem figuras inesperadas, violências conhecidas, um cotidiano do brincar que escancara a força dos jogos simbólicos, um universo de adultos que vive à margem do entendimento e da ação das crianças, como coadjuvantes de vivências por elas protagonizadas. 

Esse é o primeiro livro de Ulistkaia publicado em português, entre vários outros já premiados. Tomara que sejam traduzidos em breve!






terça-feira, maio 03, 2022

Em busca de meus irmãos na América, enfim pronto!

 Um felicidade enorme, nessa semana, ao lançar o livro de memórias de meu avô, Chaim Novodvorsky, que saiu publicado pelo selo Ayllon.

O caderno manuscrito, em iídiche, no ano de 1964, nos provocava enorme curiosidade! Minha mãe, Cecília, desde o falecimento de meu avô, nos anos 80, começou a buscar um jeito de traduzi-lo! Claro que conseguiu, história que está contada na apresentação do livro e também registrada nesses vídeo do lançamento.

Foram mais duas décadas até a vida dar espaço a esta finalização. Mas finalmente ela se deu, e ao ver o livro pronto agora e receber as primeiras reações dos leitores, podemos percebê-lo em sua grandeza! Seu Jaime era um ótimo contador de histórias e agora elas estão aí, disponíveis para encantar outros leitores!

Veja aqui as imagens de algumas fotos e documentos que selecionamos para  dialogar com a narrativa.

A venda em livrarias em geral e na loja online da editora Hedra!


                                              Parte 1

                                            Parte 2



                                           Parte 3


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quarta-feira, julho 08, 2020

Complô contra a América, soa familiar?

  Complô contra a América, obra de de Philip Roth de 2004, voltou com tudo, recebendo um reconhecimento talvez ainda mais intenso do que em seu momento de publicação.  Merecido!
Recentemente, a obra foi lançada como série da HBO, como aliás foi bem registrado no artigo Complôs contra a liberdade. espero que mantenha seu vigor.
É pela voz de Phil, um menino de 9 anos, na Nova Jersey do final da década de 30 e início dos anos 40, que acompanhamos a trajetória de uma família de judeus norte-americanos que se vê diante da perspectiva da ascensão de um simpatizante do nazismo na presidência dos Estados Unidos.
  A distopia é refinadamente construída. Fazendo uso do contexto pessoal de sua infância, inclusive dos nomes de seus familiares, Roth mescla, no pano de fundo, um xadrez de figuras históricas conhecidas, como o admirado presidente Roosevelt, o prefeito de Nova York, La Guardia, o industrial e conhecido antissemita Henry Ford, entre outros, com uma fantasiosa eleição do aviador Charles Lindenbergh. A nota biográfica de Lindenbergh aponta para uma relação estreita de simpatia com a Alemanha e seus projetos para a Europa sob a liderança de Hitler. A tênue identificação com o nazismo é utilizada para a construção de um debate político que traz como tema central o envolvimento ou não dos EUA na Segunda Guerra Mundial, semeando a discórdia entre grupos anteriormente mais coesos e acusações de paranoia e de mentalidade de gueto. 
   Pelos olhos do menino acompanhamos a inquietação do pai, a incredulidade diante da ascensão de lideranças absolutamente desdenhosas dos chamados valores americanos. Ouvimos sobre rabinos e ativistas comunitários que colocam-se à serviço dos vitoriosos, recusando-se à identificar os traços  fascistas de seus estratagemas. Fomenta-se a discórdia entre as famílias, que começam na discussão à mesa de jantar e chegam à costelas e dentes quebrados. O medo e a falta de perspectivas passam a integrar o repertório daquelas pessoas que até pouco tempo antes viviam uma rotina clássica de uma família judia de classe média. Na perspectiva da criança, misturam-se os temores das situações concretas e as fantasias fantasmagóricas, a ingenuidade e a inconsequência e as ações solidárias independente de seu preço, os sofrimentos aparentemente banais e os dolorosos momentos de lucidez.
    Roth antecipa alguns dos mecanismos mais desgastantes da vivência social e política de nossos tempos, e nos provoca a discutir as ilusões de coesão coletiva nas leituras históricas. 
    Soa familiar?


  

terça-feira, julho 10, 2018

O conto da Aia - a memória como condição de humanidade

       
O romance O Conto da Aia, da escritora canadense Margaret Atwood, de 1985, é uma obra consagrada desde a época de sua publicação. A autora, aliás, possui uma vasta obra, composta de romances, poesia, literatura infantil e textos não ficcionais, foi agraciada com numerosos prêmios, enfim, é um grande nome da literatura mundial. Mais recentemente, entretanto, O Conto da Aia voltou a ganhar destaque, seja pelo lançamento da série de mesmo nome, seja pelo recrudescimento de tendências conservadoras e posturas politicamente autoritárias no cenário internacional, que trazem semelhanças ao dramático contexto da distopia imaginada por Atwood. Misoginia, homofobia, desprezo pelo conhecimento, são alguns dos aspectos que povoam a pós-apocalíptica totalitária sociedade de Gilead.
        Recomendo muito a leitura, por sua qualidade literária e pelas reflexões que o enredo suscita. Distopias são provocativas por natureza, e fica difícil evitar uma certa paranoia provocada pela fantasia da implementação súbita de extremos de cerceamento e controle social como os descritos pela narradora, a Aia especificada no título.
       A síntese do romance é fácil de se encontrar, e a série ainda não vi - tem sido elogiada, ganhou vários Emmys, e espero realmente que ela esteja à altura do delicado texto original.
       O que se destaca, a meu ver, na leitura, é o trabalho primoroso que a autora faz ao redor da importância da memória como ato de resistência. O fluxo de consciência registrado pela narradora, limitada pelo seu lugar específico de Aia naquela sociedade rigidamente estratificada, traz marcas da busca de identidades que possam oferecer material para a criação de algum tipo de vínculo. Ela é conhecida como Offred no momento em que se passa a história, denominação que atesta seu pertencimento a um dado núcleo familiar. A negação das individualidades e das histórias pessoais aparecem como característica marcante do sistema predominante em Gilead. Assim, dá-se a intenção de marcar a memória com suas diferentes ativações: um seguido recontar das histórias das Aias que estiveram consigo no severo Centro de Reeducação; o buscar, nas esquinas da cidade, as reminiscencias dos espaços por onde circulava nos velhos tempos; o ato de aguçar a atenção para fixar os traços do amante, para que eles não se esvaiam, como parece acontecer com os traços do marido que o sistema lhe tirou
         Atwood joga, na narrativa, com a plasticidade do contar. São vários os momentos em que temos múltiplas possibilidades de visões das cenas, algumas buscando maior precisão, outras trazendo o relato do desejo da narradora, logo contrafeito pela realidade que a frustrava. A dura vivência de Offred é permeada pelas idas e vindas de seu pensamento, buscando pistas para tentar entender o súbito esfacelamento da sua existência absolutamente trivial e o espanto e terror diante de uma situação em que sobreviver e não cair ainda mais baixo na zona de indignidade tornou-se uma preocupação de primeira ordem.
        Ao final, Atwood reserva um capítulo especialmente provocativo aos historiadores, mimetizando eventos do campo e gêneros da produção historiográfica. Coloca-nos, assim, diante dos exercícios de construção da historicidade, com seus ritos e suas limitações, com compromisso de entendimento dos períodos estudados em sua complexidade, mas com a inevitável empatia em relação às dores e às violências vivenciadas por aqueles sobre quem estudamos. 
        Nesses tempos em que as disputas de narrativas acirram-se em tantas esferas, que a despersonalização das relações e a futilização dos artefatos de memória se disseminam com velocidade, a leitura de O conto da Aia valoriza capacidades humanas muito básicas como ferramentas de manutenção da humanidade em condições muito adversas. Hora de nos aferrarmos, no mínimo, ao básico.


sábado, dezembro 23, 2017

Um defeito de cor, livro nota 10 de Ana Maria Gonçalves

Tenho implicâncias com listas de leituras obrigatórias, em especial porque nosso sistema educacional tem se prestado a muitos desserviços em nome das extenuantes leituras das obras que "caem no vestibular".
Mas arrisco-me a afirmar: todos os alunos e alunas da escola básica deveriam ler Um defeito de cor antes de terminar o 3o ano do Ensino Médio. Ouçam no vídeo um trecho do prólogo.



Essa linda obra de Ana Maria Gonçalves, publicada em 2010, tem Kehindé como personagem principal e narradora, num texto que se organiza como um relato deixado a seus descendentes. Traz seus anos de menina no Daomé, passando por suas migrações no próprio continente africano, após a tomada das terras da família por guerreiros de um povo das imediações. O aprisionamento na costa do Atlântico, o suplício do navio negreiro. A solidão e a perplexidade com as transformações de sua história, as estratégias para entender e jogar melhor com a perversa condição da escravidão. O tornar-se mulher e a somatória de contradições e violências que populavam a existência das jovens naquela situação. Suas lutas pessoais em busca de liberdade e seu envolvimento em lutas coletivas pelo fim da escravidão. Os contextos dos conflitos políticos em busca pela Independência do Brasil e a dificuldade da população identificada localmente como portuguesa. A convivência entre as lutas políticas regionais contra o Império e as demandas específicas da população cativa.
O olhar de Kehindé, ou Luísa, nome cristão que adotou no Brasil, nos guia pela multiplicidade dos sentimentos: a curiosidade da criança, o fascínio pelas novidades, o desespero e a impotência, a solidariedade e a busca de parcerias. Também ganhamos, com a leitura do romance, mais intimidade com as referências da religião e das culturas dos povos africanos, pois é a partir desse alicerce que Kehindé compreende seu mundo e busca suporte e amparo.
Ana Maria Gonçalves nos traz, com sua narradora, uma sociedade profundamente desigual e violenta, mas que como todas as sociedades é composta de forma complexa: há pessoas rompem com papéis previamente formatados, há alianças inesperadas entre grupos religiosos altamente diversos, há  reviravoltas nos dilemas políticos. Uma obra que nos traz o contexto do século XIX no Brasil, propondo um olhar para a história que foge dos maniqueísmos.
Nesse trecho de abertura que li para o #saraunarede, destaca-se a palavra serendipidade. Não sei o quanto foi casual chegar a Um defeito de cor, já que recebi sugestões calorosas de meu colega Zelão, mestre de capoeira, e vi tantas outras boas referências citá-lo que fui atrás de conhecer. De qualquer maneira, chega num momento necessário. Agrega ao repertório literário da cultura brasileira uma obra que aborda a terrível trajetória da escravidão, vista pela sensibilidade de uma narradora que vivencia esse processo, e que traz um valioso olhar para a vida, para os afetos humanos e para as relações políticas que permeiam as relações no período abordado.
Essa postagem, que deveria ser curta, prolonga-se evidentemente devido a meu grande entusiasmo pelo livro. Trata-se de uma obra também volumosa, mas de uma leitura muito agradável e envolvente. Temos muito a ganhar, como sociedade, ao difundir e refletir sobre Um defeito de cor.

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quinta-feira, dezembro 07, 2017

Semíramis, lindo romance de Ana Miranda

Essa leitura foi feita como parte do #saraunarede, organizada pela Tati Martins, no Tatiando a Vida.
Escolhi um trecho de Semíramis, lindo romance de Ana Miranda.
Nessa obra, acompanhamos a trajetória de duas irmãs, Iriana e Semíramis, nascidas e criadas no sertão do Ceará, no período do Império, segunda metade do século XIX. Muitas reflexões sobre mulheres no Brasil naquela época, suas vivências comuns e suas particularidades, sua hierarquia nas condições de classe, suas barreiras e suas estratégias de afirmação.
Entremeada à narrativa, está José de Alencar, como personagem real e como referência literária, num trabalho precioso de Ana Miranda, que brinca com inserções das palavras alheias, reinventadas para nos oferecer os destinos dessas duas mulheres tão próximas e tão distintas entre si.
Vai aqui um trechinho, recomendo o livro todo vivamente!


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quinta-feira, janeiro 12, 2017

O Tribunal da Quinta-feira, uma ótima reflexão sobre os tribunais nossos de cada dia

Gostei muito de ler O Tribunal da Quinta-Feira, de Michel Laub,publicado pela Companhia das Letras esse finado 2016.
Nesse romance, voltei a constatar sua maestria literária na elegância da linguagem, na construção da trama, na coerência textual ao longo do livro, características que já apareciam no excelente Diário da Queda, o único outro título que li desse autor.O tempo da narrativa  não respeita a cronologia da história, o que facilita que as informações sobre as personagens sejam reveladas aos poucos, mantendo o suspense e brincando com as expectativas do leitor.
E haverá algo mais apropriado para um livro escrito em 2016 que a metáfora de um tribunal? Num ano marcado por vazamentos de informação dos mais diversos tipos, debates sobre o uso das mídias na criação de opinião pública, dinâmica cotidianas de pressão nas redes sociais, o autor consegue, com um enredo que faz uso de todas essas experiências, nos colocar como membros de seu tribunal. Quando me dei conta, estava julgando até o autor e sua capacidade manipulativa ao produzir o romance. Uma estratégia brilhante para acabar com nossa ilusões de isentões e imparciais.
Somado a tudo isso, o Tribunal de Quinta-feira é um texto lindo sobre relações humanas, a de cada um com sua própria história, as proximidades e distâncias que criamos com amigos, amantes, colegas de trabalho, companheiros de vida, o universo das convenções e os desejos de ir além das pequenas hipocrisias. É um livro que vai fundo nas dicotomias corpo-cultura, nos lembrando que somos muito mais animalescos do que conseguimos reconhecer. Talvez seja essa uma pista de entendimento fundamental para nossos posicionamentos nos tribunais nossos de cada dia.

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